VER e SENTIR
A REALIDADE: a alma feminina em Emoções e
Abstracções
Por Sara Jona
É
como se essa poesia fosse habitada, necessariamente, por uma alma feminina,
porém, sem estereótipos feministas” Ngomane: 2011.
O presente texto
surge no âmbito do lançamento da obra Emoções
e Abstracções – doravante EA, da
autoria de Rinkel, pseudónimo de Márcia do Santos, escritora Moçambicana com
outros dois livros publicados, nomeadamente: Almas Gémeas, em 1998 e
Revelações, de 2006. A autora é membro da Associação de Escritores Moçambicanos
e docente na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo.
A nova proposta
de Rinkel coloca o leitor perante o desafio de reflectir sobre a Literatura de
Autoria Feminina. Em Moçambique, naquilo que à mulher diz respeito e fora do
âmbito literário, o que tem sido dado a discutir são questões ligadas ao feminismo,
onde se destaca a luta de classes e a disputa por um papel social a ser
desempenhado pela mulher ou a defesa daquela como forma de libertá-la do jugo
do patriarcado e da fragilidade e subalternidade a que tem sido sujeita. Esses
são assuntos de interesse social, por continuar a ser discutidos, até serem resolvidos, mas não é sobre isso que a autora
de Emoções e Abstracções escreve e
esse facto encontra-se explicado na epígrafe ao presente texto.
A Literatura de
Autoria Feminina alerta para uma visão do mundo no feminino (mentalidade e
atitudes femininas), contrapostas a visão do mundo no masculino, no que diz
respeito à diferenças ligadas ao sentido bio-psico-social do termo. Esta oposição
é realizada através da voz que fala no texto, no tipo de linguagem utilizada e,
no ponto de vista de como os fenómenos são apropriados e narrados. Vale
recordar que, no que tange ao processo identitário, o corpo feminino pode
albergar uma alma masculina e que se manifeste socialmente como masculina, ou o
contrário, uma alma masculina ser portadora de uma mente feminina e as suas
atitudes reflectirem essa condição psicológica. Isto quer dizer que a
linguagem é sexuada e considerando esse facto, a Teoria Literária reserva, em alguns
dos seus capítulos, estudos sobre a ficção no feminino.
A propósito
desse tipo de estudos, refira-se um estudo de Magalhães (1987) que, ao analisar
a [dimensão temporal na escrita feminina contemporânea na ficção portuguesa],
concluiu que o tempo narrado por mulheres, num conjunto de obras que estudou,
centra-se na relação intra muros que essas
mulheres têm relativamente a sua existência. E essa condição, segundo a autora,
faz com que elas construam os seus textos com referências ao passado, utilizando
a memória e em direcção ao futuro, através do sonho ou do desejo; num presente
restritivo que as incita. Quanto ao tempo vivido pelo homem, Magalhães advoga que, este decorre
levando em linha de conta viagens reais e metonímicas no espaço e num presente
vivido com mais intensidade que o passado e num futuro imediato e não utópico.
Este estudo é revelador da diferença na maneira de viver, de formular ideias e
a visão de mundo, entre mulheres e homens. De um modo geral, a obra de Rinkel
traz também essas referências de uma vida interior marcada pelo passado –
através daquilo que é recordado pelo sujeito poético dos seus textos, um
presente desafiador e um futuro que se anseia estimulante.
Quanto à linguagem
utilizada no texto, é de se referir que a obra é portadora de experiências de narrar
de mulher realizada de forma simples, mas não banal e é reveladora de sensações
e representações, na sua maioria, vividas por uma alma feminina. No entanto, refira-se
que o facto de escrever sobre sensações e abstracções não é um exclusivo da
mulher, já Alberto Caeiro (um dos heterónimos de Fernando Pessoa, em O Guardador de Rebanhos demonstrou que através
do uso de linguagem abstracta e ligada o dia-a-dia era possível deixar-se as
sensações fluírem e fazer-se poesia de reconhecida qualidade; como é o caso dos
poemas que Rinkel nos apresenta.
Um exemplo sobre
o que se tem vindo a referir, acerca do uso da linguagem que habita a alma
feminina, é o caso da subtileza com
que o sujeito poético faz referência a um momento de prazer como o mencionado na pg. 31, cujo título do
poema é Mais Turbo e Acção. Nele,
encontra-se uma engenhosa descrição de um acto de masturbação, no qual uma
mulher fala sobre a masturbação de outra. Cada
leitor pode ler esse poema, de vagar e a deliciar-se da fabulosa narração. A linguagem
utilizada é de uma perspicácia típica das mulheres quando falam sobre um
assunto de alçada íntima em público.
Ao propor discutir
sobre a Escrita de Autoria Feminina, Rinkel centra a sua ficção em temas subjectivos,
ou seja, em temas que revelam o modo singular como determinado indivíduo encara
a realidade que o circunda, nomeadamente, temas autobiográficos, memorialistas,
místicos, confissões, entre outros; num conjunto de textos marcados por um eu sensitivo, que se emociona, que
indaga, que duvida, e critica o que vê e sente.
A obra foi escrita em homenagem à uma “provável”
filha que se encontra a habitar uma dimensão não terrena. Provável, porque a
dedicatória encontra-se entre aspas, ficando-se sem saber, nem a autoria da
frase, nem se se trata de alguém que de facto existiu ou é alguém fictício. Mas
na análise literária esse facto não é relevante. No entanto, permite afirmar,
com propriedade, que alguns poemas constantes do livro e que remetam ao citado
texto, têm marcas biográficas que podem ser encontradas nos poemas das pgs. 16 a 20, exemplificando:
Cedo
Partiste
Cedo partiste…/Levaste contigo o teu humor,/para
sempre./Aprendi que com a humildade, amor e ternura/conquistam-se montanhas/atravessam-se
desertos/constroem-se pontes/ultrapassam-se glaciares/vencem-se profundidades…/Agora
fazes falta/porque ensinaste como lutar pela vida/mas não ensinaste como deixar
a vida/com honra e esplendor. (EA: 16 e 17)
Ou
Minha
Filhinha I
Aquela figura magrinha e frágil/de olhos amendoados
e/cabelos castanhos encaracolados/ sorriu para mim…/”gyanana gyango”/digo baixinho. (EA:18 e 19).
Ou ainda,
O poema Conheço,
da pg. 20:
Eu conheço o teu andar/eu conheço o teu cansar/eu
conheço o teu chorar/eu conheço o teu amanhecer/ eu conheço o teu correr/
conheço o teu ser/eu até conheço/ o que tu não conheces de ti.
A obra traz também marcas memorialistas, nos poemas Ares Paradisíacos, Guerras e Varedero, das
pgs. 23, 24, e 36. Apenas um será transcrito, mas antes, deve-se realçar que os
versos dessas páginas são constituídos por diferentes sentidos que recorrem a
memória de algo vivido pelo sujeito poético:
Varedero
Abracei o mundo/ através das tuas límpidas e quentes
águas/tuas areias finas e brancas são um constante convite/ao deleite
caribenho/joquei-me em teu encantos/juntamente com Kalungano, Armando, Juvenal,
Jaime e Sangare/peguei em minhas mãos a poesia universal/através de seus
múltiplos idiomas e nacionalidades/ senti o mundo em La Habana/através de um
festival de palavras. …(EA:36).
O texto em
análise revela algumas confissões feitas pelo sujeito poético, é o caso dos
poemas Perdida, da p.26; Tu És, pg. 28; Um Desastre Aconteceu, p 43 e Amar,
pg. 27. Em Perdida, o sujeito confessa: “Perdida/Sozinha/Amedrontada/Abandonada/Sem
destino/Sem forças para lutar”. (EA: 26)
Há também uma
mística vivida por ele e que é partilhada com o leitor, através dos poemas O Mundo Colorido e Partilha, das pgs. 13 e 41. No primeiro poema, no lugar de pintar o
seu mundo com o que existe de mais luxuoso e vistoso, como seria de se esperar
em contexto comum, o sujeito poético pinta-o com cores da natureza. No segundo
poema evidencia o desapego pelas coisas materiais.
Em Emoções e Abstracções, mesmo quando se
trata de assuntos corriqueiros como a corrupção, a política ou a democracia, o
sujeito poético desenvolve-os de forma que causa espanto, como se fosse a
primeira vez que se ouve falar sobre eles. Em Literatura designa-se de estranhamento à essa técnica, que na óptica
Aristótélica consiste em abordar um assunto já conhecido, criando a percepção de se estar a falar em
algo jamais visto e admirável. Rossbacher (1977)
designa essa estratégia como o que rompe com as barreiras da percepção
automática sobre as coisas. Vejam-se os poemas das pgs. 50, 51, e 52: Os Protagonistas da Ganância, Corrupta
Democracia e Sem Sistema.
Para melhor
apreender o que se designa de causar estranhamento veja-se o exemplo do poema Uma
Nova Esperança, da pg. 53 que, abordando a questão da degradação de valores
morais da uma juventude na sociedade em causa, que até poderia ser Moçambique; o
sujeito poético fá-lo apelando a virtude da esperança. Acrescente-se a esta
análise a ideia espelhada pelo poema Realidade
Urbana, da pg.46, que tratando da falta de ética ambiental, característico
de cidades como Maputo, onde só se vê “pedra sobre pedra” em detrimento de
construção ou manutenção de espaços verdes; a linguagem utilizada é desautomatizada.
Há muito mais o
que se possa afirmar sobre a poesia de Rinkel, mas é importante deixar-se um espaço para que outras leituras
se realizem. A todos desejo uma boa
leitura e os meus parabéns, Márcia
Santos!
Referências
LAISSE, Sara. “VER, SENTIR
E VESTIR A REALIDADE: o valor do adjectivo no poema O Guardador de
Rebanhos”. Texto apresentado no
Seminário Problemáticas em Estudos Portugueses. Universidade Nova de
Lisboa/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Janeiro de 2011.
MAGALHÃES, Isabel. O Tempo das Mulheres. Lisboa: Imprensa
Nacional – casa da Moeda. 1987.
ROSSBACHER, Peter, Sklovskij´s concept of ostranenie
and Aristotle´s admiration, Vol. 92, No. 5, Compartive Literature (Dec. 1977),
pp. 1038-1043, The Johns Hopkins University Press,
http://www.jstor.org/stable/2906892, Accessed: 05/03/2009 10:53.
SANTOS, Márcia. Emoções e Abstracções.
Maputo: FUNDAC. 2011.